quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Fundamentação das Decisões no Novo CPC (Parte I – Vedação à Decisão-Surpresa)


Dando sequência à série de comentários sobre as inovações promovidas pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro, tratarei, por hora, da fundamentação das decisões judiciais, cujo regramento sofreu importantes alterações.
Por ser assunto que demanda reflexões um tanto quanto profundas, dedicarei esse post a esmiuçar somente a regra da vedação à decisão-surpresa, consagrada no artigo 10 do NCPC, deixando para os posts subsequentes a análise das demais alterações relativas à fundamentação dos atos decisórios.
 Indo direto ao ponto, veja-se a redação do artigo 10 do Novo Código:
Art. 10.  O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Atendendo aos reclamos da melhor doutrina, a regra insculpida no sobredito artigo impõe ao juiz que, ao vislumbrar a possibilidade de aplicação, na sentença, de fundamento jurídico não alvitrado por qualquer das partes no processo, conceda, antes da prolação da sentença, prazo para que os litigantes se manifestem sobre a matéria inovadora, não sendo possível, do contrário, empregar tal fundamento na motivação do decisium, sob pena de invalidade do ato.
Está-se diante de rega que intenciona concretizar a nova dimensão dada ao princípio do contraditório no NCPC, decorrente da adoção do modelo cooperativo de processo, que tem por mote o recrudescimento do poder dos jurisdicionados na condução do feito e, naturalmente, na resolução da lide (aliás, a consagração desse modelo pelo Novo Código é que deu ensejo ao permissivo, constante do seu artigo 190, para a celebração de negócios jurídicos processuais atípicos, sobre os quais falei no post anterior).
Essa nova dimensão do contraditório, já preconizada a longo tempo pela doutrina, e agora chancelada pelo texto legal, consiste no abandono de uma visão meramente formal dessa garantia -  que se satisfaz com a oportunização da oitiva bilateral das partes e a cientificação dessas sobre os atos processuais - passando a enxerga-la pelo aspecto substancial, segundo o qual há direito subjetivo das partes a um efetivo poder de influência no julgamento da causa, vedando-se decisões cujos fundamentos não tenham sido postos em discussão no feito.
 A este ponto, convém transcrever a cátedra de Humberto Theodoro Júnior:
O principal fundamento da comparticipação é o contraditório como garantia de influência e não surpresa. [...] Nesse sentido, o princípio do contraditório receberia uma nova significação, passando a ser entendido como direito de participação na construção do provimento, sob a forma de uma garantia processual de influência e não surpresa para a formação das decisões. [...] Assim, diferentemente de mera condição para a produção da sentença pelo juiz ou de aspecto formal do processo, a garantia do contraditório, como veremos a seguir, é condição institucional de realização de uma argumentação jurídica consistente e adequada e, com isso, liga-se internamente à fundamentação da decisão jurisdicional participada – exercício de poder participado [...][1].

Sem dúvida, aumentar o campo de atuação das partes no processo significa amplificar sua legitimidade democrática, já que “democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório”[2].
Em termos práticos, o dispositivo em tela visa compatibilizar a garantia do contraditório, na perspectiva substancial destacada acima, com a denominada teoria da substanciação da causa de pedir, que segundo entendimento doutrinário bastante difundido, é acolhida pelo direito brasileiro desde a edição do Codex instrumental de 1939, o que se haveria ratificado após a edição do Código de 1973, e também do Novo CPC de 2015.
Segundo a mencionada teoria, o núcleo da causa de pedir (e da causa excipiendi do réu) seria composto apenas pela narrativa fática apresentada, e não por seus aportes jurídicos, de sorte que apenas aquela narrativa se prestaria a delimitar a cognição do juiz e individualizar a demanda.
De tal arte, estando o julgador vinculado apenas ao conteúdo fático das postulações, cabe-lhe enquadrar juridicamente esses acontecimentos da maneira que entender adequada, podendo desbordar da qualificação proposta pelos litigantes.
A desvinculação do julgador quanto aos fundamentos jurídicos trazidos na demanda e na resposta é sintetizada nos brocados latinos da mihi factum dabo tibi jus (dá-me os fatos e eu te dou o direito) e iura novit curia (o juiz conhece o direito), sempre muito prestigiados em nosso direito, justamente em decorrência do acolhimento da teoria da substanciação.
Com efeito, os processualistas costumam atribuir a recepção da dita teoria ao artigo 282, inciso III, do CPC/1973 (equivalente ao atual artigo 319, inciso III, do CPC/2015) - dispositivo que impõe a precisa descrição, na petição inicial, dos fatos e fundamentos jurídicos que embasam a pretensão autoral - o que penso ser um equívoco, porquanto nele não há qualquer menção da qual se possa inferir a composição do núcleo da causa de pedir.
A meu sentir, a incorporação dessa teoria ao nosso processo civil, a despeito da ausência de dicção legal conclusiva, decorre de nossa tradição jurídica processual, produto de longa sedimentação doutrinária e jurisprudencial, que deita raízes no direito romano, no qual a causa de pedir era representada apenas pelos fatos que justificavam o agere[3], o que explica a maior importância atribuída, hodiernamente, à narração fática.
Nada obstante, a assimilação incondicional dos adágios iura novit curia e da mihi factum dabo tibi jus, já há muito, é alvo de críticas severas por parte de alguns estudiosos, como o prof. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:
A faculdade concedida aos litigantes de pronunciar-se e intervir ativamente no processo impede, outrossim, sujeitem-se passivamente à definição jurídica da causa efetuada pelo órgão judicial. E, exclui, por outro lado, o tratamento da parte como simples "objeto" de pronunciamento judicial, garantindo o seu direito de atuar de modo crítico e construtivo sobre o andamento do processo e seu resultado[4].

 Tais afirmações são inteiramente procedentes. Ora, as partes não vêm a juízo simplesmente para apesentar fatos e indagar por suas repercussões jurídicas. Elas pretendem um resultado, e, dentro de um sistema legal democrático, têm todo o direito de participar ativamente de sua produção. Por essa razão, não se pode enxergar o magistrado como o senhor absoluto do processo que, do alto de sua onisciência jurídica, diz o direito aplicável aos fatos narrados pelas partes, meras expectadoras da atuação jurisdicional.
Bem por isso, mesmo antes da vigência do NCPC, a oitiva prévia das partes quanto a novos fundamentos jurídicos idealizados pelo magistrado já era defendida por Carlos Oliveira:
(...) inadmissível sejam os litigantes surpreendidos por decisão que se apóie em ponto fundamental, numa visão jurídica de que não se tenham apercebido.  O tribunal deve, portanto, dar conhecimento prévio de qual direção o direito subjetivo corre perigo, permitindo-se o aproveitamento na sentença apenas dos fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição, possibilitando-as assim melhor defender seu direito e influenciar a decisão judicial[5].
Na mesma linha caminhavam as lições de Junior Alexandre Pinto, o qual, em trabalho monográfico sobre o tema, aduzia que a aplicação da máxima iura novit curia estaria condicionada à asseguração do contraditório, sendo tal medida essencial para que o magistrado pudesse utilizar um novo motivo na sentença[6].
Para visualizarmos melhor os malefícios suscitados pela aplicação da teoria da substanciação sem a condicionante derivada da regra da não-surpresa, observe-se o seguinte exemplo: “A” ingressa em juízo, pelo rito ordinário, pleiteando que lhe seja transferida a propriedade de um dado bem imóvel, sob a alegação de que havia firmado com “B”, proprietário do imóvel, um compromisso de compra-e-venda, cujo preço já teria pago integralmente. “A” afirma também, como fato simples - aqueles que apenas denunciam, ou ajudam a constatar a ocorrência dos fatos jurídicos -, que teria sido investido na posse do imóvel logo após a celebração do mencionado contrato preliminar, posse essa que viria exercendo a mais de quinze anos, sem oposição de “B”, o que atestaria a existência de acordo de vontade entre as partes. 
Em contestação, “B” afirma que realmente celebrara o dito negócio com “A”, transmitindo-lhe a posse do imóvel no ato da contratação, mas alega que esse não teria pago o preço total por quanto se pactuou a venda do aludido imóvel, razão pela qual o pedido do autor deveria ser indeferido.
Ao conhecer do caso, o juiz, apesar de constatar que o autor, de fato, não pagara integralmente o preço do bem sub judicie, julga procedente o pleito autoral, sob o fundamento de que, conforme narração fática incontroversa, o autor estaria na posse do imóvel há mais de quinze anos, exercendo-a de modo contínuo, pacífico e de boa-fé, o que o tornaria proprietário do imóvel por usucapião.  
Conquanto o magistrado tenha decidido com arrimo apenas em fatos alegados pelas partes, e tenha respeitado os limites do pedido autoral, desbordando apenas dos fundamentos jurídicos enunciados na mesma – o que, a princípio, seria compatível com o sistema da substanciação – é insofismável a lesão perpetrada à garantia do contraditório.
Realmente, na situação em foco, em nenhum momento as partes tiveram a oportunidade de se manifestar sobre a tese inovadora constante da decisão, sendo impossível ao réu, v.g., demonstrar a ausência dos requisitos da prescrição aquisitiva. Eis aqui a importância do artigo enfocado: impedir que decisões sejam tomadas com base em juízos solipsistas do magistrado, e, portanto, sem a devida participação dos litigantes.
Sem embargo, é importante frisar que o artigo em lume não impõe a intimação das partes para se pronunciarem sobre dispositivo de lei não mencionado nas postulações anteriores, quando o juiz pretenda invocá-lo em uma decisão.
É que há bastante diferença entre fundamento jurídico e fundamento legal. Este consiste na simples indicação de texto ou segmento de texto de lei relacionável ao caso, tendo presença facultativa nas petições. Aquele representa a demonstração da aplicabilidade e eficácia de determinada norma jurídica quanto aos fatos narrados (norma essa que pode ser produto da interpretação de um texto legal, ou de qualquer das fontes do Direito), bem como o estabelecimento de um nexo lógico entre as consequências jurídicas extraídas da norma e os pedidos deduzidos.
Nesse particular, vêm à talho os ensinamentos de Vicente Greco Filho:
Antes de mais nada é preciso observar que o fundamento jurídico é diferente do fundamento legal; este é a indicação (facultativa porque o juiz conhece o direito) dos dispositivos legais a serem aplicados para que seja decretada a procedência da ação; aquele (que é de descrição essencial) refere-se à relação jurídica e fato contrário do réu que vai justificar o pedido de tutela jurisdicional[7].
Assim sendo, apenas a inovação quanto a fundamentos jurídicos dependerá de consulta prévia aos litigantes, sendo certo que dispositivos legais diversos podem sustentar um mesmo fundamento.
Por fim, deixo uma reflexão que penso ser importante num momento como este, em que estão em curso profundas transformações na ciência processual: havendo o NCPC adotado o modelo cooperativo, elevando exponencialmente os poderes dos jurisdicionados no processo, não seria o momento adequado para mitigar a regra do iura novit curia, vedando ao magistrado que atribua uma nova qualificação jurídica aos fatos capaz de desvirtuar o núcleo da causa de pedir do autor, tal como ocorreu no exemplo descrito supra?
Voltemos ao exemplo dado linhas acima. Perceba-se que o autor alegou como fato essencial ou principal a existência de um pré-contrato de compra-e-venda, o qual geraria ao vendedor (o réu) a obrigação de assinar escritura pública transferindo a propriedade do imóvel ao autor, e fazê-la registrar no competente Registro de Imóveis, obrigação essa que foi descumprida pelo réu, sendo, portanto, devida a adjudicação compulsória do bem ao postulante. Em adendo, apenas para reforçar a existência de um acordo de vontades entre as partes, o autor aduziu, como fato secundário ou simples, que fora investido na posse do imóvel logo após a celebração do contrato, de forma que exercera a posse do bem por mais de quinze anos, e que o vendedor jamais se opusera a isso, o que ajudaria a demonstrar a existência do contrato entre as partes.
Sucede que, ao conferir novo enquadramento jurídico aos fatos narrados pelo autor, o magistrado promoveu uma inversão entre os fatos primários e os secundários, alterando radicalmente o núcleo essencial da causa de pedir. Realmente, ao apontar a aplicabilidade do instituto da usucapião, o fato central da causa de pedir passou a ser a posse, ao tempo em que o contrato se tornou um mero fato secundário, que apenas indicaria a posse com “justo título”, necessária à configuração da usucapião ordinária.
A princípio, penso que vedar a transmudação do núcleo da causa petendi pelo magistrado seria algo salutar, e totalmente consentâneo com o sistema cooperativo instituído pelo NCPC, bem como com a própria teoria da substanciação da causa de pedir, a qual tem no seu núcleo fático (fatos essenciais da pretensão) um elemento delimitador da cognição do juiz e individualizador da demanda. O que vocês acham?



[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 63-64.
[2] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 17ed. Salvador: Jus PODIVM, 2015. v.1 , p. 78.
[3] TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 3ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2009. p. 36.
[4] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 140
[5] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Garantia do Contraditório. In: TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 
[6] PINTO, Junior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Editora RT, 2007. (Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil, v. 12). p. 87
[7] GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 15ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. v 2. p. 98.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Primeiras Impressões Sobre o Permissivo Genérico de Convenções Processuais Atípicas, Constante do Artigo 190 do NCPC



Este é o primeiro de uma série de breves comentários que pretendo fazer sobre algumas novidades trazidas pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei n° 13.105/2015). O objetivo dessas notas, além de apresentar as mudanças na lei processual, é fomentar o debate sobre os temas mais polêmicos do novo diploma. Acredito que o enfrentamento dessas questões é de grande importância para todos aqueles que irão, de algum modo, se utilizar da nova lei, a fim de evitar o automatismo em sua aplicação e a assimilação acrítica de argumentos de autoridade colhidos nas lições dos juristas mais aclamados. A subserviência e resignação acadêmicas emburrecem; por isso, convido a todos a refletirmos sobre o NCPC, ferramenta essencial para a administração da justiça.
Uma das principais inovações introduzidas pelo Novo Código de Processo Civil pátrio foi a previsão, em seu artigo 190, de uma cláusula geral que permite a celebração de negócios jurídicos atípicos sobre matérias processuais, no decorrer do processo ou mesmo antes de sua instauração. O dispositivo está assim redigido:
Art. 190.  Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único.  De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
Inobstante as dúvidas sobre a adesão dos jurisdicionados a essa nova modalidade de acordos, é indisfarçável o impacto desse ditame sobre a teoria geral do processo civil, haja vista que, em prevalecendo a sua interpretação literal, haverá uma radical inversão paradigmática nesse ramo do Direito, até então pensado segundo uma concepção publicista, o que fazia de suas normas comandos inderrogáveis pela vontade das partes.   
É bem verdade que o CPC/1973 já admitia convenções sobre o processo, porém restritas a dois aspectos: o foro competente para a causa (artigo 111), e a distribuição do ônus da prova (artigo 333, parágrafo único), sendo esta última pouquíssimo utilizada. Todavia, essas eram exceções pontuais à regra da cogência das normas processuais. Tal regra é consectário da visão de processo como mecanismo de proteção das partes contra arbitrariedades do julgador, e como garantidor da eficiência e segurança jurídica na prestação jurisdicional, matérias de interesse público que, como tais, não poderiam ficar à mercê da vontade das partes.
Como efeito, foi sob essas premissas que se desenvolveu todo o sistema processual brasileiro. De fato, desde o Regulamento n° 737, de 1850 – o primeiro diploma processual genuinamente brasileiro -, passando pela Consolidação Ribas, de 1876, e pelos os Códigos processuais de 1939 e 1973, o direito brasileiro sempre esteve pautado pelo dogma da natureza pública do processo. Bem por isso, até a sua inclusão no anteprojeto do Novo CPC, a negociação processual era tema totalmente estranho à doutrina processualística brasileira, com exceção de alguns poucos escritos, como o de Barbosa Moreira[1].
Por mais incrível que possa parecer, um único artigo do Novo Código pode ser suficiente para infirmar um dos principais pilares de sustentação de nossa tradição jurídica processual. De fato, estabelecer uma cláusula geral de negociação processual é subverter totalmente o dogma publicista, privatizando o processo. O que era cogente, salvo raríssimas exceções, agora tende a tornar-se livremente alterável por acordo entre as partes, convertendo-se a exceção em regra.
De tal arte, o que antes soaria como um truísmo, hoje reclama a edição de enunciados no Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC):
Enunciado 06: “O negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à boa-fé e à cooperação”.
Enunciado 20: “(art. 190) Não são admissíveis os seguintes negócios bilaterais, dentre outros: acordo para modificação da competência absoluta, acordo para supressão da primeira instância”.
Enunciado 254: “É inválida a convenção para excluir a intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica”.
Diante disso, concluo pelo óbvio: a inclusão do dispositivo em foco no NCPC foi açodada, eis que não houve tempo para a maturação do debate sobre o tema, recém surgido em nossa doutrina. Em meu modo de ver, mesmo que tal inovação seja benéfica - do que, em princípio, discordo, pelos motivos que irei expor a seguir - ainda não estamos preparados para lidar com tamanha revolução na forma de pensar e operar o processo. Acredito que, por mais boa vontade e empenho que se tenha, levará ainda um tempo para “mudarmos a chave”, e passarmos a raciocinar sob uma ótica privatista (se preciso for, e espero que não seja!!). 
E não se tente minimizar a ruptura ora evidenciada afirmando-se que o negócio processual é apenas uma expressão do instrumentalismo, já consolidado entre nós, e que já conferia certa maleabilidade ao procedimento. Na verdade, segundo o princípio da instrumentalidade, embora livre da rigidez formal absoluta, o procedimento deve seguir o programa estabelecido na lei, tanto que, para afastar a nulidade de ato eivado de vício formal, com base no aludido princípio, é dever do juiz verificar se esse ato, conquanto praticado de outro modo, atingiu a finalidade constante da norma processual (artigo 224, CPC/1973), fazendo com que sempre prevaleça a sistemática do Código. 
Adentrando do mérito da questão, vejo uma certa utopia e um certo desvio de perspectiva na inclusão do artigo em comento.
Por certo, faz parte da ideia de um “processo civil perfeito” a existência de um específico procedimento para cada causa, inteiramente adaptado tanto às nuances da matéria de fundo, quanto às particularidades das partes, a fim de proporcionar-lhes uma experiência judicial verdadeiramente “ergonômica”, com máxima comodidade, eficiência, e real paridade no feito.
Sucede que essa obra prima arquitetura jurídica jamais poderá existir, e isso não se deve somente à incapacidade do legislador para antever as peculiaridades de cada situação que se possa levar a juízo, como parecem pensar alguns membros da Comissão de juristas que idealizou o NCPC.
Além desse aspecto, que, aliás, é inegável, existe um outro empecilho para que esse sonho se torne realidade. É que o Judiciário, assim como o legislativo, é um poder exercido por órgãos que atuam através de pessoas, e essas pessoas, em maior ou menor grau, sofrem das limitações ínsitas à espécie humana.
Destarte, para atingir a perfeição mencionada acima, não basta deixar que as próprias partes, conhecedoras de suas necessidades, elaborem um procedimento sob medida para a causa. Será necessário substituir os juízes e serventuários da Justiça por supercomputadores capazes de processar instantaneamente as informações que lhes sejam trazidas pelos jurisdicionados.
Em fato, deve-se ter à vista que as normas processuais, notadamente no que tange ao procedimento, exigem uma interpretação sistêmica que as façam perfeitamente integradas e coesas, o que, por certo, exige bastante intimidade do hermeneuta com o conteúdo de cada uma dessas normas, e vasta experiência na lida com as intercorrências mais costumeiras naquele rito específico.
Na prática forense, essa necessidade fica evidente quando magistrados e advogados são postos diante de processos de rito especial nos quais estejam pouco ou nada habituados a atuar, o que sequer pode ser considerado um demérito desses profissionais, dada a agudeza das armadilhas escondidas nos meandros de cada procedimento, as quais, só com o labor diário, se tornam mais previsíveis e melhor contornáveis.
Diante disso, fica fácil saber o que ocorrerá quando os magistrados se virem obrigados a conduzir um sem número de processos, cada qual com o seu regramento próprio, tanto no que atine ao procedimento, quanto no que respeita a “ônus, poderes, faculdades e deveres processuais” (sic.).
E não colhe o argumento de que, no mais das vezes, as partes farão alterações pontuais no rito, dado que uma única mudança em uma norma-chave pode redundar em uma reestruturação radical do processo. Imagine-se, por exemplo, um acordo que se resuma a afastar a incidência da regra da eventualidade (artigos 264 e 303 do CPC/1973, equivalentes aos artigos 329 e 342 do CPC/2015), permitindo às partes aditarem o pedido e a causa de pedir fática (ou causa excipiendi fática) a qualquer momento no feito, com consequente abertura de prazo para manifestação da parte adversa e reabertura da fase probatória. Embora essa medida, na visão das partes, possa favorecer a justiça material, por evitar que a preclusão exclua da lide fatos relevantes para o julgamento, ela torna possível que o processo se prolongue ad aeternum, algo totalmente contrário aos objetivos do Novo CPC.
Em suma, fazer do processo uma “coisa das partes” é descurar do interesse público em prol da autonomia privada, tornando banal todo o avanço técnico que a ciência processual experimentou nos últimos séculos, inclusive os trazidos pelo Novo CPC. Há pouco sentido em simplificar procedimentos, com o cuidado de não esvaziar as garantias constitucionais, se as partes podem, a seu talante, torná-los mais complicados, demorados e dispendiosos, e menos aptos a concretizarem as mencionadas garantias.
Isso, é bom que se diga, não é duvidar da capacidade das partes de cuidarem da própria vida. Ocorre que o Judiciário não é propriamente a casa das partes, e seus funcionários não são trabalhadores contratados por elas para oferecerem serviços personalizados. Falo isso não por descordar das vantagens que resultam de uma contribuição mais ativa das partes na criação das regras processuais sob medida, desde que respeitados alguns parâmetros objetivos; digo-o em nome da viabilidade prática da prestação jurisdicional, que fica obstada com a liberalização desmedida do processo. De fato, não resta dúvida de que, sendo a jurisdição prestada a milhões de cidadãos, há que se ter um mínimo de uniformidade nos procedimentos, sob pena de se comprometer a sua já diminuta eficiência.
Perceba-se que a busca por essa eficiência faz com que mesmo as câmaras de arbitragem tenham regras processuais próprias que, no mais das vezes, não podem ser livremente alteradas pelas partes, que devem a elas aderir, ou buscar outro local para resolverem suas controvérsias.
Noutro giro, em que pese o risco de ser considerado um retrógrado e simpatizante do paternalismo estatal, me coloco radicalmente contra a admissibilidade de acordos que esvaziem garantias constitucionais, como, por exemplo a da ampla defesa e do contraditório. Afirmo isso porque, dia desses, me surpreendi ao ver um importante processualista brasileiro, defensor dos negócios processuais atípicos, sustentando, em palestra, que o dogma da irrenunciabilidade dos direitos fundamentais seria reflexo de uma cultura intervencionista do Estado, personificada na figura do “Super Juiz”, a qual transformaria em deveres o que, na verdade, deveriam ser direitos do cidadão. Nesse contexto, afirmou que aqueles que pregam a irrenunciabilidade ao contraditório também deveriam entender inconstitucional o instituto da revelia, por exemplo.
Será? Se bem me lembro, a irrenunciabilidade dos direitos fundamentais não obriga ao seu efetivo exercício. No caso do contraditório, a legitimidade que esse empresta ao julgado decorre simplesmente de sua oportunização. Assim, é direito da parte não apresentar defesa, mas nenhum acordo prévio poderá impedi-la de fazê-lo, dado que acordos não podem afastar direitos fundamentais, em decorrência de sua conhecida dimensão objetiva. Isso para dizer o mínimo.
Por fim, ressalto que não sou contra os negócios processuais. São, de fato, mecanismos importantes de inclusão democrática das partes; mas devem ser exceções, possíveis somente quanto a aspectos expressamente descriminados pelo legislador, a fim de que seja preservada a ordem pública processual[2]. Nesse sentido, me agrada bastante o artigo 141 do CPC português de 2013, que confere aos litigantes a possibilidade de prorrogação consensual de qualquer prazo (mesmo o de recursos), desde que não exceda o dobro do prazo legalmente previsto.
Quanto ao controle judicial dos acordos processuais, faço coro às palavras de Daniel Neves[3], que discorda do Enunciado 133 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), o qual assenta que “salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do caput do art. 189 [atual art. 190] não dependem de homologação judicial”. Tal como o insigne professor, entendo que todo e qualquer acordo processual carece de homologação do magistrado, em face da natureza eminentemente pública do processo, tendo como correto o Enunciado 260 do FPPC, segundo o qual a homologação judicial seria condição necessária de eficácia do negócio jurídico.
No que tange aos limites do controle judicial dos negócios processuais, Daniel Neves reconhece que “Impor um procedimento a um árbitro, contratado pelas partes, é natural. Impor um procedimento a um juiz, no exercício de sua função jurisdicional, representando o Estado, é um pouco mais complexo[4].
Nesse particular, acredito que a melhor saída seja uma interpretação restritiva do artigo 190, pelos motivos já expostos, devendo o juiz verificar a compatibilidade das convenções com os princípios e garantias constitucionais, e com as diretrizes básicas eleitas pelo legislador, de modo a negar vigência àquelas convenções que desvirtuarem a ordem pública processual, e/ou embaracem significativamente a prestação jurisdicional, o que, de certo, reduz sensivelmente a margem negocial das partes.
Essas são as minhas primeiras impressões sobre esse importante dispositivo do Novo CPC. Espero, sinceramente, ter me precipitado em relação às críticas deduzidas acima. Farei muito gosto em delas refluir, diante do sucesso que venha a ter essa inovação.




[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenções das partes sobre matéria processual, in Temas de Direito Processual. 3ª série. São Paulo: Saraiva, 1984.  
[2] Esmiuçando o que seria a ordem pública processual, Leonardo Greco aduz: "A preservação da observância dos princípios e garantias fundamentais do processo é o que me ocorre denominar de ordem pública processual. Já me referi a essa noção quando tratei das nulidades absolutas, no meu livro sobre Execução, como o conjunto de requisitos dos atos processuais, impostos de modo imperativo para assegurar a proteção de interesse público precisamente determinado, o respeito a direitos fundamentais e a observância de princípios do devido processo legal, quando indisponíveis pelas partes" (GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – primeiras reflexões. Revista Quaestio Iuris. vol. 04, n° 01. ISSN 1516-0351. p. 726)
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil: Inovações, alterações, supressões comentadas. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. p. 228/229
[4] Idem. p. 229

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O Novo Processo Civil brasileiro e a busca pela efetividade

Sendo a jurisdição um poder estatal, é da essência do Estado de Direito que sofra limitações[1]. Assim, impõe-se que seja exercida mediante o emprego de técnica voltada à racionalização das decisões, coibindo-se o arbítrio do julgador, de modo a conferir aos jurisdicionados garantias em face do Estado-Juiz. A essa técnica de solução imperativa de conflitos[2] atribui-se o nome de processo, o qual pode ser observado pelo prisma subjetivo da relação jurídica processual - vínculo jurídico existente entre os sujeitos do processo -, ou pelo viés puramente objetivo do procedimento - coordenação de atos preestabelecidos, direcionados à produção da tutela jurisdicional.
Lição corrente na doutrina é a de que a ciência processual estaria passando por sua terceira fase evolutiva, superadas as duas anteriores: a fase do sincretismo - longo período que remonta dos primórdios até meados do século XIX, no qual direito material e processual se confundiam, sendo a ação entendida como o próprio direito subjetivo material que, uma vez lesado, poderia ser oposto ao ofensor em juízo, para lhe exigir reparação[3] - e a fase autonomista ou conceitual, na qual surgiram as grandes teorias sobre a natureza da ação e do processo, desenvolvendo-se uma autêntica ciência processual[4].
O novo momento da teoria geral do processo, denominado de fase instrumentalista, é reflexo das mudanças verificadas no próprio Estado, face ao surgimento do novo paradigma do Estado Constitucional, que exigiu a reformulação dos conceitos processuais clássicos à luz do direito constitucional e da teoria geral do direito[5]. Esse novo modelo tem como marcas a busca pela efetividade do processo, e por sua duração razoável, tendo como modus operandi a simplificação dos procedimentos e a relativização de exigências formais, tanto quanto possível, mediante a aplicação do princípio da instrumentalidade das formas.
Diante da mudança de paradigma acima referida, é curial delimitar o sentido da efetividade e da instrumentalidade pretendida pelos mentores do novo processo civil brasileiro, a fim de que não seja menoscabado o papel da boa técnica processual em sua consecução.
Com efeito, a crítica ao tecnicismo processual, entoada por grandes nomes da escola instrumentalista, não deve ser mal interpretada. À evidência, não é o refinamento da técnica que distancia o processo do mundo real e da utilidade prática, mas sim o sentido que lhe é atribuído pelos juristas. Por via de consequência, não será o esquecimento dos conceitos e institutos processuais que viabilizará a efetiva aplicação do direito material.
Sem dúvida, o grande erro dos autonomistas não foi desenvolver os institutos processuais, tornando-os bem mais complexos e, por tabela, distantes da compreensão dos leigos; essa, ao revés, foi a sua maior contribuição, e deverá ser sempre enaltecida. Em verdade, os seus pecados capitais foram outros, quais sejam: colocaram o processo a serviço da técnica, negligenciando os escopos extrínsecos do direito processual, os quais, segundo Dinamarco, situam-se nos campos social, político e jurídico[6]; ademais, omitiram-se quanto ao aprimoramento das medidas executivas, centrando os seus estudos apenas no processo de conhecimento.
Assim, a grande viragem proporcionada pelo instrumentalismo teve por mote a correção dos dois erros essenciais cometidos pela escola antecessora. Por um lado, o formalismo passou a ser flexibilizável, sendo impositivo apenas na medida do necessário para o atingimento dos fins sistemáticos colimados pelo legislador. De outra face, o processo deixou de ser simples elemento limitador e burocratizador da atuação do magistrado, passando a ser, também, um mecanismo de instrumentação do mister jurisdicional, com clara repercussão no âmbito probatório e executivo, nos quais houve sensível recrudescimento dos poderes do juiz.
Sobeja claro, portanto, que a guinada instrumentalista não representa um retorno à fase do sincretismo, e tampouco revela qualquer desprezo a toda a evolução teórica conquistada através da lavra dos grandes estudiosos do processo. Representa, isso sim, um reforço do compromisso do direito adjetivo com a justiça material, e com a eficácia prática das decisões jurisdicionais.
Vê-se, pois, que a efetividade ora alvejada possui duas vertentes: a efetividade na aplicação do direito material às decisões, relativizando, na medida do possível, irregularidades procedimentais de pouca gravidade, que antes impediriam o julgamento do mérito; e a efetividade na implementação prática das decisões, primando-se pela execução específica das obrigações, e coibindo-se duramente as evasivas do devedor.
A este ponto calha advertir que esses dois objetivos devem, necessariamente, caminhar juntos, sob pena de suscitarem consequências extremamente perniciosas. De fato, assim como não convém ter-se boas sentenças sem que se possa dar-lhes aplicabilidade prática, não há mérito algum em contar-se com um sistema executivo eficiente para a implementação de decisões injustas (seja no que pertine à infidelidade da decisão ao direito material, seja no atinente ao desrespeito às garantias processuais).  
Deveras, compreender a efetividade como a simples aptidão do comando jurisdicional para operar efeitos no mundo prático em curto espaço de tempo, modificando de alguma forma a vida das pessoas, equivale a negligenciar o escopo protetivo do processo, deixando-se o jurisdicionado à mercê das arbitrariedades do Estado-Juiz.
De fato, em prevalecendo essa interpretação, a efetividade converter-se-ia em um elemento totalmente independente do processo. Basta imaginar um sistema judiciário no qual se autorizasse ao magistrado agir por iniciativa própria, e sem subordinação a qualquer regra limitadora do exercício da jurisdição. É induvidoso que tal sistema, embora carente de um devido processo legal, gozaria de altíssimo grau de efetividade – no sentido de repercussão mundo real -, eis que o juiz poderia, de plano, exarar a sua decisão, executando-a da forma que lhe permitisse máxima eficácia.
Assim, a efetividade a ser alvejada sob a égide do novo paradigma do Estado Constitucional deve ser aquela que faz do processo um instrumento efetivo de garantia da aplicação do ordenamento jurídico material na resolução concreta do litígio, e não, simplesmente, um mecanismo de implementação prática do comando jurisdicional, sem preocupações com o método empregado para a construção de seu conteúdo.





[1] No exauriente conceito formulado por Didier Junior, “A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o Direito de modo imperativo (b) e criativo (c), reconhecendo/ efetivando/ protegendo/ situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tornar-se indiscutível g). (DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito civil e processo de conhecimento. 14ed. rev. amp. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. v. 1. p. 95)
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6 ed. Malheiros: São Paulo, 2009. v. 3.
[3] CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrino; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo.28ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 51
[4] Idem.Ibidem.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. 3ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v.1. apresentação à 1ª Edição.
[6] Idem. Ibidem.