quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O Novo Processo Civil brasileiro e a busca pela efetividade

Sendo a jurisdição um poder estatal, é da essência do Estado de Direito que sofra limitações[1]. Assim, impõe-se que seja exercida mediante o emprego de técnica voltada à racionalização das decisões, coibindo-se o arbítrio do julgador, de modo a conferir aos jurisdicionados garantias em face do Estado-Juiz. A essa técnica de solução imperativa de conflitos[2] atribui-se o nome de processo, o qual pode ser observado pelo prisma subjetivo da relação jurídica processual - vínculo jurídico existente entre os sujeitos do processo -, ou pelo viés puramente objetivo do procedimento - coordenação de atos preestabelecidos, direcionados à produção da tutela jurisdicional.
Lição corrente na doutrina é a de que a ciência processual estaria passando por sua terceira fase evolutiva, superadas as duas anteriores: a fase do sincretismo - longo período que remonta dos primórdios até meados do século XIX, no qual direito material e processual se confundiam, sendo a ação entendida como o próprio direito subjetivo material que, uma vez lesado, poderia ser oposto ao ofensor em juízo, para lhe exigir reparação[3] - e a fase autonomista ou conceitual, na qual surgiram as grandes teorias sobre a natureza da ação e do processo, desenvolvendo-se uma autêntica ciência processual[4].
O novo momento da teoria geral do processo, denominado de fase instrumentalista, é reflexo das mudanças verificadas no próprio Estado, face ao surgimento do novo paradigma do Estado Constitucional, que exigiu a reformulação dos conceitos processuais clássicos à luz do direito constitucional e da teoria geral do direito[5]. Esse novo modelo tem como marcas a busca pela efetividade do processo, e por sua duração razoável, tendo como modus operandi a simplificação dos procedimentos e a relativização de exigências formais, tanto quanto possível, mediante a aplicação do princípio da instrumentalidade das formas.
Diante da mudança de paradigma acima referida, é curial delimitar o sentido da efetividade e da instrumentalidade pretendida pelos mentores do novo processo civil brasileiro, a fim de que não seja menoscabado o papel da boa técnica processual em sua consecução.
Com efeito, a crítica ao tecnicismo processual, entoada por grandes nomes da escola instrumentalista, não deve ser mal interpretada. À evidência, não é o refinamento da técnica que distancia o processo do mundo real e da utilidade prática, mas sim o sentido que lhe é atribuído pelos juristas. Por via de consequência, não será o esquecimento dos conceitos e institutos processuais que viabilizará a efetiva aplicação do direito material.
Sem dúvida, o grande erro dos autonomistas não foi desenvolver os institutos processuais, tornando-os bem mais complexos e, por tabela, distantes da compreensão dos leigos; essa, ao revés, foi a sua maior contribuição, e deverá ser sempre enaltecida. Em verdade, os seus pecados capitais foram outros, quais sejam: colocaram o processo a serviço da técnica, negligenciando os escopos extrínsecos do direito processual, os quais, segundo Dinamarco, situam-se nos campos social, político e jurídico[6]; ademais, omitiram-se quanto ao aprimoramento das medidas executivas, centrando os seus estudos apenas no processo de conhecimento.
Assim, a grande viragem proporcionada pelo instrumentalismo teve por mote a correção dos dois erros essenciais cometidos pela escola antecessora. Por um lado, o formalismo passou a ser flexibilizável, sendo impositivo apenas na medida do necessário para o atingimento dos fins sistemáticos colimados pelo legislador. De outra face, o processo deixou de ser simples elemento limitador e burocratizador da atuação do magistrado, passando a ser, também, um mecanismo de instrumentação do mister jurisdicional, com clara repercussão no âmbito probatório e executivo, nos quais houve sensível recrudescimento dos poderes do juiz.
Sobeja claro, portanto, que a guinada instrumentalista não representa um retorno à fase do sincretismo, e tampouco revela qualquer desprezo a toda a evolução teórica conquistada através da lavra dos grandes estudiosos do processo. Representa, isso sim, um reforço do compromisso do direito adjetivo com a justiça material, e com a eficácia prática das decisões jurisdicionais.
Vê-se, pois, que a efetividade ora alvejada possui duas vertentes: a efetividade na aplicação do direito material às decisões, relativizando, na medida do possível, irregularidades procedimentais de pouca gravidade, que antes impediriam o julgamento do mérito; e a efetividade na implementação prática das decisões, primando-se pela execução específica das obrigações, e coibindo-se duramente as evasivas do devedor.
A este ponto calha advertir que esses dois objetivos devem, necessariamente, caminhar juntos, sob pena de suscitarem consequências extremamente perniciosas. De fato, assim como não convém ter-se boas sentenças sem que se possa dar-lhes aplicabilidade prática, não há mérito algum em contar-se com um sistema executivo eficiente para a implementação de decisões injustas (seja no que pertine à infidelidade da decisão ao direito material, seja no atinente ao desrespeito às garantias processuais).  
Deveras, compreender a efetividade como a simples aptidão do comando jurisdicional para operar efeitos no mundo prático em curto espaço de tempo, modificando de alguma forma a vida das pessoas, equivale a negligenciar o escopo protetivo do processo, deixando-se o jurisdicionado à mercê das arbitrariedades do Estado-Juiz.
De fato, em prevalecendo essa interpretação, a efetividade converter-se-ia em um elemento totalmente independente do processo. Basta imaginar um sistema judiciário no qual se autorizasse ao magistrado agir por iniciativa própria, e sem subordinação a qualquer regra limitadora do exercício da jurisdição. É induvidoso que tal sistema, embora carente de um devido processo legal, gozaria de altíssimo grau de efetividade – no sentido de repercussão mundo real -, eis que o juiz poderia, de plano, exarar a sua decisão, executando-a da forma que lhe permitisse máxima eficácia.
Assim, a efetividade a ser alvejada sob a égide do novo paradigma do Estado Constitucional deve ser aquela que faz do processo um instrumento efetivo de garantia da aplicação do ordenamento jurídico material na resolução concreta do litígio, e não, simplesmente, um mecanismo de implementação prática do comando jurisdicional, sem preocupações com o método empregado para a construção de seu conteúdo.





[1] No exauriente conceito formulado por Didier Junior, “A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o Direito de modo imperativo (b) e criativo (c), reconhecendo/ efetivando/ protegendo/ situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tornar-se indiscutível g). (DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito civil e processo de conhecimento. 14ed. rev. amp. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. v. 1. p. 95)
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6 ed. Malheiros: São Paulo, 2009. v. 3.
[3] CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrino; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo.28ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 51
[4] Idem.Ibidem.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. 3ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v.1. apresentação à 1ª Edição.
[6] Idem. Ibidem.

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