Sendo a jurisdição um poder estatal, é da essência do Estado de Direito que sofra limitações[1]. Assim, impõe-se que seja exercida mediante o emprego de técnica voltada à racionalização das decisões, coibindo-se o arbítrio do julgador, de modo a conferir aos jurisdicionados garantias em face do Estado-Juiz. A essa técnica de solução imperativa de conflitos[2] atribui-se o nome de processo, o qual pode ser observado pelo prisma subjetivo da relação jurídica processual - vínculo jurídico existente entre os sujeitos do processo -, ou pelo viés puramente objetivo do procedimento - coordenação de atos preestabelecidos, direcionados à produção da tutela jurisdicional.
Lição corrente na doutrina é a de que a ciência
processual estaria passando por sua terceira fase evolutiva, superadas as duas
anteriores: a fase do sincretismo - longo
período que remonta dos primórdios até meados do século XIX, no qual direito
material e processual se confundiam, sendo a ação entendida como o próprio
direito subjetivo material que, uma vez lesado, poderia ser oposto ao ofensor
em juízo, para lhe exigir reparação[3] - e a fase autonomista ou conceitual, na qual surgiram as grandes teorias sobre a natureza da
ação e do processo, desenvolvendo-se uma autêntica ciência processual[4].
O novo momento da teoria geral do processo, denominado
de fase instrumentalista, é reflexo
das mudanças verificadas no próprio Estado, face ao surgimento do novo
paradigma do Estado Constitucional, que exigiu a reformulação dos conceitos
processuais clássicos à luz do direito constitucional e da teoria geral do
direito[5]. Esse novo modelo tem como
marcas a busca pela efetividade do
processo, e por sua duração razoável,
tendo como modus operandi a
simplificação dos procedimentos e a relativização de exigências formais, tanto
quanto possível, mediante a aplicação do princípio
da instrumentalidade das formas.
Diante da mudança de paradigma acima referida, é
curial delimitar o sentido da efetividade
e da instrumentalidade pretendida
pelos mentores do novo processo civil brasileiro, a fim de que não seja
menoscabado o papel da boa técnica processual em sua consecução.
Com efeito, a crítica ao tecnicismo processual,
entoada por grandes nomes da escola instrumentalista, não deve ser mal
interpretada. À evidência, não é o refinamento da técnica que distancia o
processo do mundo real e da utilidade prática, mas sim o sentido que lhe é atribuído
pelos juristas. Por via de consequência, não será o esquecimento dos conceitos
e institutos processuais que viabilizará a efetiva aplicação do direito
material.
Sem dúvida, o grande erro dos autonomistas não foi desenvolver
os institutos processuais, tornando-os bem mais complexos e, por tabela,
distantes da compreensão dos leigos; essa, ao revés, foi a sua maior
contribuição, e deverá ser sempre enaltecida. Em verdade, os seus pecados
capitais foram outros, quais sejam: colocaram o processo a serviço da técnica,
negligenciando os escopos extrínsecos do direito processual, os quais, segundo
Dinamarco, situam-se nos campos social, político
e jurídico[6]; ademais,
omitiram-se quanto ao aprimoramento das medidas executivas, centrando os seus
estudos apenas no processo de conhecimento.
Assim, a grande viragem proporcionada
pelo instrumentalismo teve por mote a correção dos dois erros essenciais
cometidos pela escola antecessora. Por um lado, o formalismo passou a ser
flexibilizável, sendo impositivo apenas na medida do necessário para o
atingimento dos fins sistemáticos colimados pelo legislador. De outra face, o
processo deixou de ser simples elemento limitador e burocratizador da atuação
do magistrado, passando a ser, também, um mecanismo de instrumentação do mister
jurisdicional, com clara repercussão no âmbito probatório e executivo, nos
quais houve sensível recrudescimento dos poderes do juiz.
Sobeja claro, portanto, que a guinada instrumentalista não representa um retorno à fase do
sincretismo, e tampouco revela qualquer desprezo a toda a evolução teórica conquistada através
da lavra dos grandes estudiosos do processo. Representa, isso sim, um reforço do compromisso do direito adjetivo com a justiça material, e com a eficácia prática das decisões
jurisdicionais.
Vê-se, pois, que a efetividade
ora alvejada possui duas vertentes: a efetividade na aplicação do direito
material às decisões, relativizando, na medida do possível, irregularidades
procedimentais de pouca gravidade, que antes impediriam o julgamento do mérito;
e a efetividade na implementação prática das decisões, primando-se pela execução
específica das obrigações, e coibindo-se duramente as evasivas do devedor.
A este ponto calha advertir que esses dois objetivos devem,
necessariamente, caminhar juntos, sob pena de suscitarem consequências extremamente perniciosas.
De fato, assim como não convém ter-se boas sentenças sem que se possa dar-lhes
aplicabilidade prática, não há mérito algum em contar-se com um sistema
executivo eficiente para a implementação de decisões injustas (seja no que
pertine à infidelidade da decisão ao direito material, seja no atinente ao
desrespeito às garantias processuais).
Deveras, compreender a efetividade como a simples
aptidão do comando jurisdicional para operar efeitos no mundo prático em curto
espaço de tempo, modificando de alguma forma a vida das pessoas, equivale a
negligenciar o escopo protetivo do processo, deixando-se o jurisdicionado à
mercê das arbitrariedades do Estado-Juiz.
De fato, em prevalecendo essa interpretação, a
efetividade converter-se-ia em um elemento totalmente independente do processo. Basta
imaginar um sistema judiciário no qual se autorizasse ao magistrado agir por
iniciativa própria, e sem subordinação a qualquer regra limitadora do exercício
da jurisdição. É induvidoso que tal sistema, embora carente de um devido
processo legal, gozaria de altíssimo grau de efetividade – no sentido de
repercussão mundo real -, eis que o juiz poderia, de plano, exarar a sua
decisão, executando-a da forma que lhe permitisse máxima eficácia.
Assim, a efetividade a ser alvejada sob a égide do
novo paradigma do Estado Constitucional deve ser aquela que faz do processo um
instrumento efetivo de garantia da aplicação do ordenamento jurídico material
na resolução concreta do litígio, e não, simplesmente, um mecanismo de
implementação prática do comando jurisdicional, sem preocupações com o método
empregado para a construção de seu conteúdo.
[1] No
exauriente conceito formulado por Didier Junior,
“A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar
o Direito de modo imperativo (b) e criativo (c), reconhecendo/ efetivando/
protegendo/ situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão
insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tornar-se indiscutível
g). (DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil:
introdução ao direito civil e processo de conhecimento. 14ed. rev. amp. e
atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. v.
1. p. 95)
[2] DINAMARCO,
Cândido Rangel. Instituições de
direito processual civil. 6 ed. Malheiros: São Paulo, 2009. v. 3.
[3] CINTRA,
Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrino; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo.28ed. São
Paulo: Malheiros, 2012. p. 51
[5]
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de
processo civil. 3ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v.1.
apresentação à 1ª Edição.
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