quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Fundamentação das Decisões no Novo CPC (Parte I – Vedação à Decisão-Surpresa)


Dando sequência à série de comentários sobre as inovações promovidas pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro, tratarei, por hora, da fundamentação das decisões judiciais, cujo regramento sofreu importantes alterações.
Por ser assunto que demanda reflexões um tanto quanto profundas, dedicarei esse post a esmiuçar somente a regra da vedação à decisão-surpresa, consagrada no artigo 10 do NCPC, deixando para os posts subsequentes a análise das demais alterações relativas à fundamentação dos atos decisórios.
 Indo direto ao ponto, veja-se a redação do artigo 10 do Novo Código:
Art. 10.  O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Atendendo aos reclamos da melhor doutrina, a regra insculpida no sobredito artigo impõe ao juiz que, ao vislumbrar a possibilidade de aplicação, na sentença, de fundamento jurídico não alvitrado por qualquer das partes no processo, conceda, antes da prolação da sentença, prazo para que os litigantes se manifestem sobre a matéria inovadora, não sendo possível, do contrário, empregar tal fundamento na motivação do decisium, sob pena de invalidade do ato.
Está-se diante de rega que intenciona concretizar a nova dimensão dada ao princípio do contraditório no NCPC, decorrente da adoção do modelo cooperativo de processo, que tem por mote o recrudescimento do poder dos jurisdicionados na condução do feito e, naturalmente, na resolução da lide (aliás, a consagração desse modelo pelo Novo Código é que deu ensejo ao permissivo, constante do seu artigo 190, para a celebração de negócios jurídicos processuais atípicos, sobre os quais falei no post anterior).
Essa nova dimensão do contraditório, já preconizada a longo tempo pela doutrina, e agora chancelada pelo texto legal, consiste no abandono de uma visão meramente formal dessa garantia -  que se satisfaz com a oportunização da oitiva bilateral das partes e a cientificação dessas sobre os atos processuais - passando a enxerga-la pelo aspecto substancial, segundo o qual há direito subjetivo das partes a um efetivo poder de influência no julgamento da causa, vedando-se decisões cujos fundamentos não tenham sido postos em discussão no feito.
 A este ponto, convém transcrever a cátedra de Humberto Theodoro Júnior:
O principal fundamento da comparticipação é o contraditório como garantia de influência e não surpresa. [...] Nesse sentido, o princípio do contraditório receberia uma nova significação, passando a ser entendido como direito de participação na construção do provimento, sob a forma de uma garantia processual de influência e não surpresa para a formação das decisões. [...] Assim, diferentemente de mera condição para a produção da sentença pelo juiz ou de aspecto formal do processo, a garantia do contraditório, como veremos a seguir, é condição institucional de realização de uma argumentação jurídica consistente e adequada e, com isso, liga-se internamente à fundamentação da decisão jurisdicional participada – exercício de poder participado [...][1].

Sem dúvida, aumentar o campo de atuação das partes no processo significa amplificar sua legitimidade democrática, já que “democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório”[2].
Em termos práticos, o dispositivo em tela visa compatibilizar a garantia do contraditório, na perspectiva substancial destacada acima, com a denominada teoria da substanciação da causa de pedir, que segundo entendimento doutrinário bastante difundido, é acolhida pelo direito brasileiro desde a edição do Codex instrumental de 1939, o que se haveria ratificado após a edição do Código de 1973, e também do Novo CPC de 2015.
Segundo a mencionada teoria, o núcleo da causa de pedir (e da causa excipiendi do réu) seria composto apenas pela narrativa fática apresentada, e não por seus aportes jurídicos, de sorte que apenas aquela narrativa se prestaria a delimitar a cognição do juiz e individualizar a demanda.
De tal arte, estando o julgador vinculado apenas ao conteúdo fático das postulações, cabe-lhe enquadrar juridicamente esses acontecimentos da maneira que entender adequada, podendo desbordar da qualificação proposta pelos litigantes.
A desvinculação do julgador quanto aos fundamentos jurídicos trazidos na demanda e na resposta é sintetizada nos brocados latinos da mihi factum dabo tibi jus (dá-me os fatos e eu te dou o direito) e iura novit curia (o juiz conhece o direito), sempre muito prestigiados em nosso direito, justamente em decorrência do acolhimento da teoria da substanciação.
Com efeito, os processualistas costumam atribuir a recepção da dita teoria ao artigo 282, inciso III, do CPC/1973 (equivalente ao atual artigo 319, inciso III, do CPC/2015) - dispositivo que impõe a precisa descrição, na petição inicial, dos fatos e fundamentos jurídicos que embasam a pretensão autoral - o que penso ser um equívoco, porquanto nele não há qualquer menção da qual se possa inferir a composição do núcleo da causa de pedir.
A meu sentir, a incorporação dessa teoria ao nosso processo civil, a despeito da ausência de dicção legal conclusiva, decorre de nossa tradição jurídica processual, produto de longa sedimentação doutrinária e jurisprudencial, que deita raízes no direito romano, no qual a causa de pedir era representada apenas pelos fatos que justificavam o agere[3], o que explica a maior importância atribuída, hodiernamente, à narração fática.
Nada obstante, a assimilação incondicional dos adágios iura novit curia e da mihi factum dabo tibi jus, já há muito, é alvo de críticas severas por parte de alguns estudiosos, como o prof. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:
A faculdade concedida aos litigantes de pronunciar-se e intervir ativamente no processo impede, outrossim, sujeitem-se passivamente à definição jurídica da causa efetuada pelo órgão judicial. E, exclui, por outro lado, o tratamento da parte como simples "objeto" de pronunciamento judicial, garantindo o seu direito de atuar de modo crítico e construtivo sobre o andamento do processo e seu resultado[4].

 Tais afirmações são inteiramente procedentes. Ora, as partes não vêm a juízo simplesmente para apesentar fatos e indagar por suas repercussões jurídicas. Elas pretendem um resultado, e, dentro de um sistema legal democrático, têm todo o direito de participar ativamente de sua produção. Por essa razão, não se pode enxergar o magistrado como o senhor absoluto do processo que, do alto de sua onisciência jurídica, diz o direito aplicável aos fatos narrados pelas partes, meras expectadoras da atuação jurisdicional.
Bem por isso, mesmo antes da vigência do NCPC, a oitiva prévia das partes quanto a novos fundamentos jurídicos idealizados pelo magistrado já era defendida por Carlos Oliveira:
(...) inadmissível sejam os litigantes surpreendidos por decisão que se apóie em ponto fundamental, numa visão jurídica de que não se tenham apercebido.  O tribunal deve, portanto, dar conhecimento prévio de qual direção o direito subjetivo corre perigo, permitindo-se o aproveitamento na sentença apenas dos fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição, possibilitando-as assim melhor defender seu direito e influenciar a decisão judicial[5].
Na mesma linha caminhavam as lições de Junior Alexandre Pinto, o qual, em trabalho monográfico sobre o tema, aduzia que a aplicação da máxima iura novit curia estaria condicionada à asseguração do contraditório, sendo tal medida essencial para que o magistrado pudesse utilizar um novo motivo na sentença[6].
Para visualizarmos melhor os malefícios suscitados pela aplicação da teoria da substanciação sem a condicionante derivada da regra da não-surpresa, observe-se o seguinte exemplo: “A” ingressa em juízo, pelo rito ordinário, pleiteando que lhe seja transferida a propriedade de um dado bem imóvel, sob a alegação de que havia firmado com “B”, proprietário do imóvel, um compromisso de compra-e-venda, cujo preço já teria pago integralmente. “A” afirma também, como fato simples - aqueles que apenas denunciam, ou ajudam a constatar a ocorrência dos fatos jurídicos -, que teria sido investido na posse do imóvel logo após a celebração do mencionado contrato preliminar, posse essa que viria exercendo a mais de quinze anos, sem oposição de “B”, o que atestaria a existência de acordo de vontade entre as partes. 
Em contestação, “B” afirma que realmente celebrara o dito negócio com “A”, transmitindo-lhe a posse do imóvel no ato da contratação, mas alega que esse não teria pago o preço total por quanto se pactuou a venda do aludido imóvel, razão pela qual o pedido do autor deveria ser indeferido.
Ao conhecer do caso, o juiz, apesar de constatar que o autor, de fato, não pagara integralmente o preço do bem sub judicie, julga procedente o pleito autoral, sob o fundamento de que, conforme narração fática incontroversa, o autor estaria na posse do imóvel há mais de quinze anos, exercendo-a de modo contínuo, pacífico e de boa-fé, o que o tornaria proprietário do imóvel por usucapião.  
Conquanto o magistrado tenha decidido com arrimo apenas em fatos alegados pelas partes, e tenha respeitado os limites do pedido autoral, desbordando apenas dos fundamentos jurídicos enunciados na mesma – o que, a princípio, seria compatível com o sistema da substanciação – é insofismável a lesão perpetrada à garantia do contraditório.
Realmente, na situação em foco, em nenhum momento as partes tiveram a oportunidade de se manifestar sobre a tese inovadora constante da decisão, sendo impossível ao réu, v.g., demonstrar a ausência dos requisitos da prescrição aquisitiva. Eis aqui a importância do artigo enfocado: impedir que decisões sejam tomadas com base em juízos solipsistas do magistrado, e, portanto, sem a devida participação dos litigantes.
Sem embargo, é importante frisar que o artigo em lume não impõe a intimação das partes para se pronunciarem sobre dispositivo de lei não mencionado nas postulações anteriores, quando o juiz pretenda invocá-lo em uma decisão.
É que há bastante diferença entre fundamento jurídico e fundamento legal. Este consiste na simples indicação de texto ou segmento de texto de lei relacionável ao caso, tendo presença facultativa nas petições. Aquele representa a demonstração da aplicabilidade e eficácia de determinada norma jurídica quanto aos fatos narrados (norma essa que pode ser produto da interpretação de um texto legal, ou de qualquer das fontes do Direito), bem como o estabelecimento de um nexo lógico entre as consequências jurídicas extraídas da norma e os pedidos deduzidos.
Nesse particular, vêm à talho os ensinamentos de Vicente Greco Filho:
Antes de mais nada é preciso observar que o fundamento jurídico é diferente do fundamento legal; este é a indicação (facultativa porque o juiz conhece o direito) dos dispositivos legais a serem aplicados para que seja decretada a procedência da ação; aquele (que é de descrição essencial) refere-se à relação jurídica e fato contrário do réu que vai justificar o pedido de tutela jurisdicional[7].
Assim sendo, apenas a inovação quanto a fundamentos jurídicos dependerá de consulta prévia aos litigantes, sendo certo que dispositivos legais diversos podem sustentar um mesmo fundamento.
Por fim, deixo uma reflexão que penso ser importante num momento como este, em que estão em curso profundas transformações na ciência processual: havendo o NCPC adotado o modelo cooperativo, elevando exponencialmente os poderes dos jurisdicionados no processo, não seria o momento adequado para mitigar a regra do iura novit curia, vedando ao magistrado que atribua uma nova qualificação jurídica aos fatos capaz de desvirtuar o núcleo da causa de pedir do autor, tal como ocorreu no exemplo descrito supra?
Voltemos ao exemplo dado linhas acima. Perceba-se que o autor alegou como fato essencial ou principal a existência de um pré-contrato de compra-e-venda, o qual geraria ao vendedor (o réu) a obrigação de assinar escritura pública transferindo a propriedade do imóvel ao autor, e fazê-la registrar no competente Registro de Imóveis, obrigação essa que foi descumprida pelo réu, sendo, portanto, devida a adjudicação compulsória do bem ao postulante. Em adendo, apenas para reforçar a existência de um acordo de vontades entre as partes, o autor aduziu, como fato secundário ou simples, que fora investido na posse do imóvel logo após a celebração do contrato, de forma que exercera a posse do bem por mais de quinze anos, e que o vendedor jamais se opusera a isso, o que ajudaria a demonstrar a existência do contrato entre as partes.
Sucede que, ao conferir novo enquadramento jurídico aos fatos narrados pelo autor, o magistrado promoveu uma inversão entre os fatos primários e os secundários, alterando radicalmente o núcleo essencial da causa de pedir. Realmente, ao apontar a aplicabilidade do instituto da usucapião, o fato central da causa de pedir passou a ser a posse, ao tempo em que o contrato se tornou um mero fato secundário, que apenas indicaria a posse com “justo título”, necessária à configuração da usucapião ordinária.
A princípio, penso que vedar a transmudação do núcleo da causa petendi pelo magistrado seria algo salutar, e totalmente consentâneo com o sistema cooperativo instituído pelo NCPC, bem como com a própria teoria da substanciação da causa de pedir, a qual tem no seu núcleo fático (fatos essenciais da pretensão) um elemento delimitador da cognição do juiz e individualizador da demanda. O que vocês acham?



[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 63-64.
[2] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 17ed. Salvador: Jus PODIVM, 2015. v.1 , p. 78.
[3] TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 3ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2009. p. 36.
[4] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 140
[5] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Garantia do Contraditório. In: TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 
[6] PINTO, Junior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Editora RT, 2007. (Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil, v. 12). p. 87
[7] GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 15ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. v 2. p. 98.

3 comentários:

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    1. Muito bem, meu amigo! Bom saber que pensamos parecido.

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    2. Excelente tema meu amigo. Concordo plenamente com você. Reputo tal artigo como o mais instigante do novo CPC. Trata-se de notória conquista da ciência processual brasileira a favor do acesso a uma ordem jurídica justa.
      Não vejo lógica, no atual contexto em que vivemos, permitir que o juiz transmute o núcleo da causa de pedir (mais especificamente a integração dos fundamentos jurídicos) sem oportunizar às partes o contraditório substancial (poder de influência no conteúdo da decisão).
      Imagine só uma decisão surpresa em segunda instância. Só restaria à parte os limitados recursos excepcionais.
      O juiz conhece o direito de ofício. Lógico. Porém, é preciso ter ciência de que agir de ofício não significa excluir a participação dos jurisdicionados. Ou então limitar a participação das partes ao mero esclarecimento dos fatos. "Poder agir de ofício é poder agir sem provocação; não é o mesmo que agir sem provocar as partes".
      Fico feliz com a inovação legislativa. Decorrência fiel de aplicação do princípio da cooperação processual e patente manifestação do Estado Democrático de Direito no processo jurisdicional.

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