segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A Fundamentação das Decisões no Novo CPC (Parte II - O Sistema da Persuasão Racional no Artigo 371 do Novo Código)

Prosseguindo com a análise das novidades trazidas pelo Novo CPC, darei sequência aos comentários, iniciados no post anterior, sobre as alterações legislativas que, de algum modo, impactam no conteúdo e/ou na forma da fundamentação das decisões judiciais.
Só para variar, falarei sobre um tema bastante polêmico: a disparidade entre a redação dos artigos 131 e 371, do CPC/1973 e do CPC/2015, respectivamente. Tais dispositivos, embora correlatos, diferenciam-se pela inexistência, apenas nesse último, de menção expressa à liberdade do magistrado na apreciação das provas, o que, para muitos, significaria o fim do sistema do “livre convencimento motivado”, representando, portanto, um grande passo na luta contra os criticados decisionismos dos juízes brasileiros.
Veja-se a redação desses dispositivos:
CPC/1973
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.
CPC/2015.
Art. 371.  O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
A meu ver, se trata de alteração legislativa de grande importância, mas exclusivamente em razão de sua forte carga simbólica, que pode trazer repercussões práticas muito desejáveis para o processo civil brasileiro. No entanto, como tentarei demonstrar a seguir, não consigo visualizar nenhuma repercussão técnico-jurídica advinda do novo texto legal.  
Deveras, a supressão do advérbio “livremente”, processada em atendimento à sugestão do notável jurista e professor gaúcho Lenio Streck, um dos mais destacados críticos do protagonismo judicial, e acompanhada de uma exposição de motivos na qual se ressalta a incompatibilidade do sistema democrático com juízos intimistas na apreciação das provas, revela uma tímida, porém importante reação do Legislativo contra os excessos cometidos pelo Poder Judiciário, nos últimos tempos.
A inovação, por certo, sepultará a antiga e incoerente nomenclatura “livre convencimento motivado”, atribuída pela generalidade dos estudiosos e pela unanimidade dos tribunais ao sistema de valoração probatório brasileiro, fazendo ascender, provavelmente, a expressão “persuasão racional”, já empregada por alguns autores[1].
Todavia, daí a afirmar que a nova dicção normativa significa uma ruptura com o sistema de valoração probatória até então vigente, e a implantação de um novo, há muita distância.
Nesse passo, calha perguntar: eram os juízes, sob a égide do Código processual de 1973, totalmente livres para firmarem sua convicção sobre as provas, por mais esdrúxulos que fossem os motivos apresentados? E mais: O Novo Código impôs alguma limitação adicional ao juízo de valor sobre as provas? Para as duas perguntas, penso que a resposta seja negativa.
Acredito haverem fortes razões para se sustentar que a recepção do Código de 1973 pela Constituição Federal de 1988 – a qual, indubitavelmente, provocou uma reconstrução semântica em alguns dos ditames do CPC - afastou por completo a possibilidade de o juiz tomar um dado fato como verdadeiro pela simples razão de “lhe ter parecido suficiente a prova apresentada”, embora, na prática, motivações como essas não tenham se tornado raras.
Penso eu que seria flagrantemente inconstitucional interpretar o termo “livremente”, contido no artigo 131 do CPC/1973, como um permissivo para que o magistrado valorasse as provas de acordo com sua consciência pessoal, sem respeito a padrões mínimos de razoabilidade. Por isso, o termo em foco deve ser visto apenas como um indicativo da não adoção, pelo Código Buzaid, do sistema da prova tarifada - aquele no qual a lei estabelece, previamente, a hierarquia dos diversos meios de prova – devendo o próprio juiz, destarte, determinar os pesos que terão as provas constantes dos autos, expondo, na decisão, os critérios empregados e as razões dos pesos atribuídos.
De tal arte, ao exigir a indicação “das razões da formação de seu convencimento”, a lei antiga, mesmo que implicitamente, impunha ao juiz que valorasse as provas com base em parâmetros objetivos, os quais deveriam ser consignados na fundamentação da decisão, não apenas para fins informativos (o que seria incompatível com o sistema democrático instituído pela CRFB/1988), mas também para que pudessem ser controlados, com base no princípio da razoabilidade.
Enfatizando a necessidade de controle sobre a atividade jurisdicional relativa à apreciação das provas, Malatesta já sustentava o que chamou de sociabilidade do convencimento: “O convencimento não deve ser, por outros termos, fundado em apreciações subjetivas do juiz; deve ser tal que os fatos e as provas submetidas a seu juízo, se fossem submetidos à apreciação desinteressada de qualquer outra pessoa racional, deveriam produzir, também nesta, a mesma convicção que produziriam no juiz[2].
Em fato, a discricionariedade advinda da ausência de tarifação dos meios de prova não pode ser confundida com arbitrariedade, que pressupõe a ausência total de limites e, por isso, não tem lugar em qualquer das funções públicas desempenhadas em um Estado Democrático de Direito.
Sobre os limites da discricionariedade, creio não haver melhor doutrina do que a de Celso Antônio Bandeira de Mello, que embora concebida com vistas à função administrativa, tem plena aplicabilidade no âmbito jurisdicional:
[...] A existência de discricionariedade ao nível da norma não significa, pois, que a discricionariedade existirá com a mesma amplitude perante o caso concreto e nem sequer que existirá em face de qualquer situação concreta que ocorra, pois a compostura do caso concreto excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstracto na regra e, eventualmente, tornará evidente que uma única medida seria apta a cumprir-lhe a finalidade. [...] Para ter-se como liso o ato não basta que o agente alegue que operou no exercício de discrição, isto é, dentro do campo de alternativas que a lei lhe abria. O juiz poderá, a instâncias da parte e em face da argumentação por ela desenvolvida, verificar, em exame de razoabilidade, se o comportamento administrativamente adotado, inobstante contido dentro das possibilidade em abstrato abertas pela lei, revelou-se, in concreto, respeitoso das circunstâncias do caso e deferente para com a finalidade da norma aplicada[3].
Em suma, o fato de a norma processual não estabelecer, antecipadamente, o peso que terá cada prova apresentada, não quer dizer que o juiz possa, in concreto, adotar qualquer critério de valoração, devendo sim adotar critério que se mostre adequado para aquele caso específico, cuidando em justificar racional e objetivamente essa adequação, para que se possa aferir a razoabilidade de seu ato.
Quanto ao aspecto da racionalidade da valoração, aduz Fredie Didier[4]: "a motivação deve ser racional: deve partir de cânones racionais comumente aceitos e reconhecidos no contexto da cultura média daquele tempo e daquele lugar em que atua o órgão julgador. Não se confunde com uma ciência exata ou com uma lógica absoluta da matemática pura. O que se espera se espera é que atenda às regras de validade da argumentação e do raciocínio jurídico".  
Outrossim, Didier também ressalta a necessidade da observância das máximas da experiência, sendo vedado ao juiz, por exemplo, negar a lei da gravidade, ou negar que a combinação das cores azul e amarelo resulta na cor verde[5].
Dito isso, acredito que a redação inovadora do dispositivo em comento vem muito mais para consolidar, ou tentar assegurar a aplicabilidade prática de um sistema já existente, posto que inerente ao nosso sistema constitucional, do que, propriamente, para erigir um novo sistema de valoração da prova.
A iniciativa impedirá que os julgadores se utilizem de uma interpretação literal e assistemática do texto normativo para justificarem suas arbitrariedades, em matéria de valoração probatória.
O artigo 371 do CPC/2015 traz, portanto, um recado claro dirigido aos magistrados: não há, no desempenho da função jurisdicional, espaço para o arbítrio e para a irracionalidade.



[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 50ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v.1 p. 415
[2] Apud SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1. p. 354.
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 953 e 954.
[4] DIDIER JUNIOR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 10 ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. V2.  p. 103
[5] DIDIER JUNIOR, Fredie. op. cit. p. 106

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