Prosseguindo com a análise das novidades trazidas pelo Novo CPC, darei
sequência aos comentários, iniciados no post anterior, sobre as alterações
legislativas que, de algum modo, impactam no conteúdo e/ou na forma da
fundamentação das decisões judiciais.
Só para variar, falarei sobre um tema bastante polêmico: a
disparidade entre a redação dos artigos 131 e 371, do CPC/1973 e do CPC/2015,
respectivamente. Tais dispositivos, embora correlatos, diferenciam-se pela
inexistência, apenas nesse último, de menção
expressa à liberdade do magistrado na apreciação das provas, o que, para
muitos, significaria o fim do sistema do “livre convencimento motivado”, representando,
portanto, um grande passo na luta contra os criticados decisionismos dos juízes
brasileiros.
Veja-se a redação desses
dispositivos:
CPC/1973
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos
e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas
deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.
CPC/2015.
Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos
autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na
decisão as razões da formação de seu convencimento.
A meu ver, se trata de alteração legislativa de grande
importância, mas exclusivamente em razão de sua forte carga simbólica, que pode
trazer repercussões práticas muito desejáveis para o processo civil brasileiro.
No entanto, como tentarei demonstrar a seguir, não consigo visualizar nenhuma repercussão
técnico-jurídica advinda do novo texto legal.
Deveras, a supressão do advérbio “livremente”, processada em
atendimento à sugestão do notável jurista e professor gaúcho Lenio Streck, um dos mais destacados críticos
do protagonismo judicial, e acompanhada de uma exposição de motivos na qual se ressalta
a incompatibilidade do sistema democrático com juízos intimistas na apreciação
das provas, revela uma tímida, porém importante reação do Legislativo contra os
excessos cometidos pelo Poder Judiciário, nos últimos tempos.
A inovação, por certo, sepultará a antiga e incoerente nomenclatura
“livre convencimento motivado”, atribuída pela generalidade dos estudiosos e
pela unanimidade dos tribunais ao sistema de valoração probatório brasileiro,
fazendo ascender, provavelmente, a expressão “persuasão racional”, já empregada
por alguns autores[1].
Todavia, daí a afirmar que a nova dicção normativa significa uma
ruptura com o sistema de valoração probatória até então vigente, e a implantação
de um novo, há muita distância.
Nesse passo, calha perguntar: eram os juízes, sob a égide do
Código processual de 1973, totalmente livres para firmarem sua convicção sobre as
provas, por mais esdrúxulos que fossem os motivos apresentados? E mais: O Novo
Código impôs alguma limitação adicional ao juízo de valor sobre as provas? Para
as duas perguntas, penso que a resposta seja negativa.
Acredito haverem fortes razões para se sustentar que a recepção do
Código de 1973 pela Constituição Federal de 1988 – a qual, indubitavelmente,
provocou uma reconstrução semântica em alguns dos ditames do CPC - afastou por
completo a possibilidade de o juiz tomar um dado fato como verdadeiro pela simples
razão de “lhe ter parecido suficiente a prova apresentada”, embora, na prática,
motivações como essas não tenham se tornado raras.
Penso eu que seria flagrantemente inconstitucional interpretar o
termo “livremente”, contido no artigo 131 do CPC/1973, como um permissivo para
que o magistrado valorasse as provas de acordo com sua consciência pessoal, sem
respeito a padrões mínimos de razoabilidade. Por isso, o termo em foco deve ser
visto apenas como um indicativo da não adoção, pelo Código Buzaid, do sistema
da prova tarifada - aquele no qual a lei estabelece, previamente, a hierarquia dos
diversos meios de prova – devendo o próprio juiz, destarte, determinar os pesos
que terão as provas constantes dos autos, expondo, na decisão, os critérios
empregados e as razões dos pesos atribuídos.
De tal arte, ao exigir a indicação “das razões da formação de seu
convencimento”, a lei antiga, mesmo que implicitamente, impunha ao juiz que
valorasse as provas com base em parâmetros objetivos, os quais deveriam ser
consignados na fundamentação da decisão, não apenas para fins informativos (o
que seria incompatível com o sistema democrático instituído pela CRFB/1988),
mas também para que pudessem ser controlados, com base no princípio da
razoabilidade.
Enfatizando a necessidade de controle
sobre a atividade jurisdicional relativa à apreciação das provas, Malatesta já sustentava o que chamou de
sociabilidade do convencimento: “O convencimento não deve ser, por
outros termos, fundado em apreciações subjetivas do juiz; deve ser tal que
os fatos e as provas submetidas a seu juízo, se fossem submetidos à apreciação
desinteressada de qualquer outra pessoa racional, deveriam produzir, também nesta,
a mesma convicção que produziriam no juiz”[2].
Em fato, a discricionariedade advinda da
ausência de tarifação dos
meios de prova não pode ser confundida com arbitrariedade, que pressupõe a
ausência total de limites e, por isso, não tem lugar em qualquer das funções
públicas desempenhadas em um Estado Democrático de Direito.
Sobre os limites da discricionariedade, creio não haver melhor
doutrina do que a de Celso Antônio
Bandeira de Mello, que embora concebida com vistas à função
administrativa, tem plena aplicabilidade no âmbito jurisdicional:
[...] A existência de
discricionariedade ao nível da norma não significa, pois, que a discricionariedade
existirá com a mesma amplitude perante o caso concreto e nem sequer que
existirá em face de qualquer situação concreta que ocorra, pois a compostura do
caso concreto excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstracto na regra e, eventualmente,
tornará evidente que uma única medida seria apta a cumprir-lhe a finalidade. [...]
Para ter-se como liso o ato não basta que o agente alegue que operou no
exercício de discrição, isto é, dentro do campo de alternativas que a lei lhe
abria. O juiz poderá, a instâncias da parte e em face da argumentação por ela
desenvolvida, verificar, em exame de razoabilidade,
se o comportamento administrativamente adotado, inobstante contido dentro das
possibilidade em abstrato abertas pela
lei, revelou-se, in concreto,
respeitoso das circunstâncias do caso e deferente para com a finalidade da
norma aplicada[3].
Em suma, o fato de a norma processual não estabelecer, antecipadamente,
o peso que terá cada prova apresentada, não quer dizer que o juiz possa, in concreto, adotar qualquer critério de
valoração, devendo sim adotar critério que se mostre adequado para aquele caso
específico, cuidando em justificar racional e objetivamente essa adequação, para
que se possa aferir a razoabilidade de seu ato.
Quanto ao aspecto da racionalidade da valoração, aduz Fredie Didier[4]:
"a motivação deve ser racional: deve partir de cânones
racionais comumente aceitos e reconhecidos no contexto da cultura média daquele
tempo e daquele lugar em que atua o órgão julgador. Não se confunde com uma
ciência exata ou com uma lógica absoluta da matemática pura. O que se espera se
espera é que atenda às regras de validade da argumentação e do raciocínio
jurídico".
Outrossim, Didier também
ressalta a necessidade da observância das máximas da experiência, sendo vedado
ao juiz, por exemplo, negar a lei da gravidade, ou negar que a combinação das
cores azul e amarelo resulta na cor verde[5].
Dito isso, acredito que a redação inovadora do dispositivo em
comento vem muito mais para consolidar, ou tentar assegurar a aplicabilidade
prática de um sistema já existente, posto que inerente ao nosso sistema
constitucional, do que, propriamente, para erigir um novo sistema de valoração
da prova.
A iniciativa impedirá que os julgadores se utilizem de uma
interpretação literal e assistemática do texto normativo para justificarem suas
arbitrariedades, em matéria de valoração probatória.
O artigo 371 do CPC/2015 traz, portanto, um recado claro dirigido
aos magistrados: não há, no desempenho da função jurisdicional, espaço para o
arbítrio e para a irracionalidade.
[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 50ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2009. v.1 p. 415
[2] Apud SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual
civil. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1. p. 354.
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ed.
São Paulo: Malheiros, 2009. p. 953 e 954.
[4] DIDIER JUNIOR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 10
ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. V2. p. 103
[5] DIDIER JUNIOR, Fredie. op. cit. p. 106
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