Este é o
primeiro de uma série de breves comentários que pretendo fazer sobre algumas
novidades trazidas pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei n°
13.105/2015). O objetivo dessas notas, além de apresentar as mudanças na lei
processual, é fomentar o debate sobre os temas mais polêmicos do novo diploma. Acredito
que o enfrentamento dessas questões é de grande importância para todos aqueles
que irão, de algum modo, se utilizar da nova lei, a fim de evitar o automatismo
em sua aplicação e a assimilação acrítica de argumentos de autoridade colhidos
nas lições dos juristas mais aclamados. A subserviência e resignação acadêmicas
emburrecem; por isso, convido a todos a refletirmos sobre o NCPC, ferramenta
essencial para a administração da justiça.
Uma das
principais inovações introduzidas pelo Novo Código de Processo Civil pátrio foi
a previsão, em seu artigo 190, de uma cláusula geral que permite a celebração
de negócios jurídicos atípicos sobre matérias processuais, no decorrer do
processo ou mesmo antes de sua instauração. O dispositivo está assim redigido:
Art. 190.
Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito
às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo
às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes,
faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único.
De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções
previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade
ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre
em manifesta situação de vulnerabilidade.
Inobstante
as dúvidas sobre a adesão dos jurisdicionados a essa nova modalidade de
acordos, é indisfarçável o impacto desse ditame sobre a teoria geral do processo
civil, haja vista que, em prevalecendo a sua interpretação literal, haverá uma radical
inversão paradigmática nesse ramo do Direito, até então pensado segundo uma
concepção publicista, o que fazia de suas normas comandos inderrogáveis pela
vontade das partes.
É bem
verdade que o CPC/1973 já admitia convenções sobre o processo, porém restritas
a dois aspectos: o foro competente para a causa (artigo 111), e a distribuição
do ônus da prova (artigo 333, parágrafo único), sendo esta última pouquíssimo utilizada.
Todavia, essas eram exceções pontuais à regra da cogência das normas
processuais. Tal regra é consectário da visão de processo como mecanismo de
proteção das partes contra arbitrariedades do julgador, e como garantidor da
eficiência e segurança jurídica na prestação jurisdicional, matérias de
interesse público que, como tais, não poderiam ficar à mercê da vontade das
partes.
Como
efeito, foi sob essas premissas que se desenvolveu todo o sistema processual
brasileiro. De fato, desde o Regulamento n° 737, de 1850 – o primeiro diploma
processual genuinamente brasileiro -, passando pela Consolidação Ribas, de
1876, e pelos os Códigos processuais de 1939 e 1973, o direito brasileiro sempre
esteve pautado pelo dogma da natureza pública do processo. Bem por isso, até a
sua inclusão no anteprojeto do Novo CPC, a negociação processual era tema
totalmente estranho à doutrina processualística brasileira, com exceção de
alguns poucos escritos, como o de Barbosa
Moreira[1].
Por mais
incrível que possa parecer, um único artigo do Novo Código pode ser suficiente
para infirmar um dos principais pilares de sustentação de nossa tradição
jurídica processual. De fato, estabelecer uma cláusula geral de negociação
processual é subverter totalmente o dogma publicista, privatizando o processo.
O que era cogente, salvo raríssimas exceções, agora tende a tornar-se
livremente alterável por acordo entre as partes, convertendo-se a exceção em
regra.
De tal
arte, o que antes soaria como um truísmo, hoje reclama a edição de enunciados no
Fórum Permanente de Processualistas
Civis (FPPC):
Enunciado
06: “O negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à
boa-fé e à cooperação”.
Enunciado
20: “(art.
190) Não são admissíveis os seguintes negócios bilaterais, dentre outros:
acordo para modificação da competência absoluta, acordo para supressão da
primeira instância”.
Enunciado 254: “É inválida a convenção para excluir a
intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica”.
Diante
disso, concluo pelo óbvio: a inclusão do dispositivo em foco no NCPC foi
açodada, eis que não houve tempo para a maturação do debate sobre o tema, recém
surgido em nossa doutrina. Em meu modo de ver, mesmo que tal inovação seja
benéfica - do que, em princípio, discordo, pelos motivos que irei expor a
seguir - ainda não estamos preparados para lidar com tamanha revolução na forma
de pensar e operar o processo. Acredito que, por mais boa vontade e empenho que
se tenha, levará ainda um tempo para “mudarmos a chave”, e passarmos a
raciocinar sob uma ótica privatista (se preciso for, e espero que não seja!!).
E não se
tente minimizar a ruptura ora evidenciada afirmando-se que o negócio processual
é apenas uma expressão do instrumentalismo,
já consolidado entre nós, e que já conferia certa maleabilidade ao
procedimento. Na verdade, segundo o princípio da instrumentalidade, embora
livre da rigidez formal absoluta, o procedimento deve seguir o programa
estabelecido na lei, tanto que, para afastar a nulidade de ato eivado de vício
formal, com base no aludido princípio, é dever do juiz verificar se esse ato,
conquanto praticado de outro modo, atingiu a finalidade constante da norma
processual (artigo 224, CPC/1973), fazendo com que sempre prevaleça a
sistemática do Código.
Adentrando
do mérito da questão, vejo uma certa utopia e um certo desvio de perspectiva na
inclusão do artigo em comento.
Por
certo, faz parte da ideia de um “processo civil perfeito” a existência de um
específico procedimento para cada causa, inteiramente adaptado tanto às nuances
da matéria de fundo, quanto às particularidades das partes, a fim de
proporcionar-lhes uma experiência judicial verdadeiramente “ergonômica”, com
máxima comodidade, eficiência, e real paridade no feito.
Sucede
que essa obra prima arquitetura jurídica jamais poderá existir, e isso não se deve
somente à incapacidade do legislador para antever as peculiaridades de cada
situação que se possa levar a juízo, como parecem pensar alguns membros da
Comissão de juristas que idealizou o NCPC.
Além
desse aspecto, que, aliás, é inegável, existe um outro empecilho para que esse
sonho se torne realidade. É que o Judiciário, assim como o legislativo, é um
poder exercido por órgãos que atuam através de pessoas, e essas pessoas, em
maior ou menor grau, sofrem das limitações ínsitas à espécie humana.
Destarte,
para atingir a perfeição mencionada acima, não basta deixar que as próprias
partes, conhecedoras de suas necessidades, elaborem um procedimento sob medida
para a causa. Será necessário substituir os juízes e serventuários da Justiça por
supercomputadores capazes de processar instantaneamente as informações que lhes
sejam trazidas pelos jurisdicionados.
Em fato,
deve-se ter à vista que as normas processuais, notadamente no que tange ao
procedimento, exigem uma interpretação sistêmica que as façam perfeitamente
integradas e coesas, o que, por certo, exige bastante intimidade do hermeneuta
com o conteúdo de cada uma dessas normas, e vasta experiência na lida com as
intercorrências mais costumeiras naquele rito específico.
Na prática
forense, essa necessidade fica evidente quando magistrados e advogados são
postos diante de processos de rito especial nos quais estejam pouco ou nada
habituados a atuar, o que sequer pode ser considerado um demérito desses
profissionais, dada a agudeza das armadilhas escondidas nos meandros de cada
procedimento, as quais, só com o labor diário, se tornam mais previsíveis e melhor
contornáveis.
Diante
disso, fica fácil saber o que ocorrerá quando os magistrados se virem obrigados
a conduzir um sem número de processos, cada qual com o seu regramento próprio,
tanto no que atine ao procedimento, quanto no que respeita a “ônus, poderes, faculdades e deveres processuais” (sic.).
E não
colhe o argumento de que, no mais das vezes, as partes farão alterações
pontuais no rito, dado que uma única mudança em uma norma-chave pode redundar
em uma reestruturação radical do processo. Imagine-se, por exemplo, um acordo
que se resuma a afastar a incidência da regra da eventualidade (artigos 264 e
303 do CPC/1973, equivalentes aos artigos 329 e 342 do CPC/2015), permitindo às
partes aditarem o pedido e a causa de pedir fática (ou causa excipiendi fática) a qualquer momento no feito, com consequente
abertura de prazo para manifestação da parte adversa e reabertura da fase
probatória. Embora essa medida, na visão das partes, possa favorecer a justiça
material, por evitar que a preclusão exclua da lide fatos relevantes para o
julgamento, ela torna possível que o processo se prolongue ad aeternum, algo totalmente contrário aos objetivos do Novo CPC.
Em suma,
fazer do processo uma “coisa das partes” é descurar do interesse público em
prol da autonomia privada, tornando banal todo o avanço técnico que a ciência
processual experimentou nos últimos séculos, inclusive os trazidos pelo Novo CPC.
Há pouco sentido em simplificar procedimentos, com o cuidado de não esvaziar as
garantias constitucionais, se as partes podem, a seu talante, torná-los mais
complicados, demorados e dispendiosos, e menos aptos a concretizarem as
mencionadas garantias.
Isso, é
bom que se diga, não é duvidar da capacidade das partes de cuidarem da própria
vida. Ocorre que o Judiciário não é propriamente a casa das partes, e seus
funcionários não são trabalhadores contratados por elas para oferecerem
serviços personalizados. Falo isso não por descordar das vantagens que resultam
de uma contribuição mais ativa das partes na criação das regras processuais sob
medida, desde que respeitados alguns parâmetros objetivos; digo-o em nome da
viabilidade prática da prestação jurisdicional, que fica obstada com a
liberalização desmedida do processo. De fato, não resta dúvida de que, sendo a jurisdição
prestada a milhões de cidadãos, há que se ter um mínimo de uniformidade nos
procedimentos, sob pena de se comprometer a sua já diminuta eficiência.
Perceba-se
que a busca por essa eficiência faz com que mesmo as câmaras de arbitragem
tenham regras processuais próprias que, no mais das vezes, não podem ser
livremente alteradas pelas partes, que devem a elas aderir, ou buscar outro
local para resolverem suas controvérsias.
Noutro
giro, em que pese o risco de ser considerado um retrógrado e simpatizante do paternalismo
estatal, me coloco radicalmente contra a admissibilidade de acordos que esvaziem
garantias constitucionais, como, por exemplo a da ampla defesa e do
contraditório. Afirmo isso porque, dia desses, me surpreendi ao ver um
importante processualista brasileiro, defensor dos negócios processuais atípicos,
sustentando, em palestra, que o dogma da irrenunciabilidade dos direitos
fundamentais seria reflexo de uma cultura intervencionista do Estado,
personificada na figura do “Super Juiz”, a qual transformaria em deveres o que,
na verdade, deveriam ser direitos do cidadão. Nesse contexto, afirmou que aqueles
que pregam a irrenunciabilidade ao contraditório também deveriam entender
inconstitucional o instituto da revelia, por exemplo.
Será? Se
bem me lembro, a irrenunciabilidade dos direitos fundamentais não obriga ao seu
efetivo exercício. No caso do contraditório, a legitimidade que esse empresta
ao julgado decorre simplesmente de sua oportunização. Assim, é direito da parte
não apresentar defesa, mas nenhum acordo prévio poderá impedi-la de fazê-lo,
dado que acordos não podem afastar direitos fundamentais, em decorrência de sua
conhecida dimensão objetiva. Isso para dizer o mínimo.
Por fim,
ressalto que não sou contra os negócios processuais. São, de fato, mecanismos
importantes de inclusão democrática das partes; mas devem ser exceções,
possíveis somente quanto a aspectos expressamente descriminados pelo
legislador, a fim de que seja preservada a ordem pública processual[2]. Nesse
sentido, me agrada bastante o artigo 141 do CPC português de 2013, que confere aos litigantes a possibilidade de prorrogação
consensual de qualquer prazo (mesmo o de recursos), desde que não exceda o
dobro do prazo legalmente previsto.
Quanto ao
controle judicial dos acordos processuais, faço coro às palavras de Daniel Neves[3],
que discorda do Enunciado 133 do Fórum Permanente de
Processualistas Civis (FPPC), o qual assenta que “salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais
do caput do art. 189 [atual art. 190] não dependem de homologação judicial”.
Tal como o insigne professor, entendo que todo e qualquer acordo processual
carece de homologação do magistrado, em face da natureza eminentemente pública do
processo, tendo como correto o Enunciado 260 do FPPC, segundo o qual a
homologação judicial seria condição necessária de eficácia do negócio jurídico.
No que tange aos limites
do controle judicial dos negócios processuais, Daniel Neves reconhece
que “Impor um procedimento a um
árbitro, contratado pelas partes, é natural. Impor um procedimento a um juiz,
no exercício de sua função jurisdicional, representando o Estado, é um pouco
mais complexo”[4].
Nesse particular, acredito
que a melhor saída seja uma interpretação restritiva do artigo 190, pelos
motivos já expostos, devendo o juiz verificar a
compatibilidade das convenções com os princípios e garantias constitucionais, e
com as diretrizes básicas eleitas pelo legislador, de modo a negar vigência
àquelas convenções que desvirtuarem a ordem pública processual, e/ou embaracem significativamente
a prestação jurisdicional, o que, de certo, reduz sensivelmente a margem
negocial das partes.
Essas
são as minhas primeiras impressões sobre esse importante dispositivo do Novo
CPC. Espero, sinceramente, ter me precipitado em relação às críticas deduzidas
acima. Farei muito gosto em delas refluir, diante do sucesso que venha a ter
essa inovação.
[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenções das partes sobre matéria
processual, in Temas de Direito Processual. 3ª série. São Paulo: Saraiva,
1984.
[2]
Esmiuçando o que seria a ordem
pública processual, Leonardo Greco aduz: "A preservação da observância dos princípios e garantias fundamentais do
processo é o que me ocorre denominar de ordem pública processual. Já me referi
a essa noção quando tratei das nulidades absolutas, no meu livro sobre
Execução, como o conjunto de requisitos dos atos processuais, impostos de modo
imperativo para assegurar a proteção de interesse público precisamente
determinado, o respeito a direitos fundamentais e a observância de princípios
do devido processo legal, quando indisponíveis pelas partes" (GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual –
primeiras reflexões. Revista Quaestio Iuris. vol. 04, n° 01. ISSN 1516-0351. p.
726)
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil:
Inovações, alterações, supressões comentadas. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método, 2015. p. 228/229
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